quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A ressurreição

A cabeça da mãe de Jason em seu altar especial -- Sexta-feira 13 Parte 2 (1981).

Continuando as análises da série Sexta-feira 13, passamos à parte 2. Este é o único filme que apresenta uma protagonista mais humana, pra mim. Ela não tem a cabeça cheia de vento como seus coleguinhas, possui algumas falas interessantes e se interessa pelo mito do Jason com o respeito que ele merece. Ela é a única disposta a discutir seriamente a probabilidade de haver um assassino de verdade escondido na floresta, e a única que pensa sobre Jason usando um pouco de seus conhecimentos sociopsicológicos. Foi uma boa escolha para a protagonista porque, enquanto ao longo do filme é legal ver Jason matando os outros monitores, no final o legal é torcer por ela quando ela tenta enganar o Jason imitando a mãe dele. Eu realmente quero que ela consiga escapar dele, porque ela é a única que, apesar de não apoiá-lo, tenta compreendê-lo.

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Em Sexta-Feira 13 Parte 2 é Jason, e não sua mãe, quem comanda a carnificina. Com isso, o filme se aparta de suas raízes giallo* , já que o matador não é nem insano nem exatamente humano. Ele é mais como um golem, um mero ser que conhece e compreende apenas destruição. O tom inteiro da série muda neste ponto. Comparado ao original, a Parte 2 é muito mais cruel. Tem um certo senso de humor para consigo mesma. O primeiro também tinha, mas era um humor mais de conteúdo do que de estilo. O diretor Steve Miner incluiu muitas piadas visuais envolvendo ângulos em primeira pessoa. No começo do filme, nós nos escondemos atrás de uma porta, espionando a primeira vítima. Ela vai tomar banho, e nós nos a seguimos até o banheiro. Abruptamente, ela abre a cortina do chuveiro e olha diretamente para nós, para a câmera. Todas essas tomadas são para despistar. De repente, um gato pula pela janela, assustando tanto nós quanto ela. Então ela abre a geladeira e encontra uma cabeça humana. É aí que o assassino enfia um furador de gelo na testa dela: no momento em que a visão em primeira pessoa passa para a visão objetiva em terceira pessoa, é que ela morre. Outra boa sacada passa quase despercebida: a câmera em primeira pessoa filma através dos arbustos, e nós vemos uma garota semi-nua voltando do lago. Depois de se secar, ela atira a toalha contra a lente.

Miner está conscientemente brincando com as convenções do gênero slasher, e ele faz isso de maneira sutil, o que faz com que a brincadeira funcione (eu imagino uma platéia no cinema dando risadinhas de prazer nas cenas supracitadas) sem nos distrair do clima e do suspense do filme. A abundância de ângulos em primeira pessoa faz com que nós nos relacionemos antes com o assassino do que com as vítimas, mais do que nunca. Um de meus momentos favoritos na Parte 2 é quando um dos monitores está contando a dois outros uma piada sobre um coelho e um urso que estão fazendo cocô no mato. Nós ouvimos a piada sendo contada enquanto eles se afastam, e suas vozes se esvaem. Então, na próxima cena, ouvimos a conclusão da piada. Adoro como isso elimina a piada como assunto central da cena. Como assumo que esta cena dos monitores caminhando para longe é apresentada do ponto de vista de Jason, é indiscutível que ela seja mostrada sob sua perspectiva. Quer dizer, porque nós não estamos envolvidos com a piada, porque estamos de fora do assunto, nós nos tornamos incapazes de nos relacionar com as vítimas. Nosso lado realmente é o de Jason.

A perspectiva do Jason-criança-solitária é estabelecida desde a primeira cena. Uma garotinha está saltitando pela rua cantando uma cantiga infantil. Nós só vemos os pés dela. Sua mãe a chama para entrar em casa, e quando ela sai da tela, Jason entra. (Como ele saiu de Crystal Lake para o subúrbio para esta cena? Ninguém sabe com certeza.) A heroína do filme é especializada em psicologia infantil, e no final, ela encurrala Jason vestindo o suéter de sua mãe e dizendo a ele que ela está satisfeita e que ele deve abandonar o facão agora. Sabe, ele é tão pouco desenvolvido cognitivamente que associa qualquer mulher usando aquele suéter com sua mãe, assim como o sobrinho de minha esposa costumava me chamar de papai só porque eu sou um homem adulto. Toda a premissa da série talvez dependa deste artifício em particular. Não fosse assim, Jason seria capaz de diferenciar os monitores do acampamento que o negligenciaram quando ele era criança destes que ele está matando agora. A obediência de Jason para com sua mãe é um assunto espinhoso. Eu não acho que Jason mate monitores porque sua mãe mandou que ele o fizesse.

Tudo que levou sua mãe a matar, em primeiro lugar, foi que ela acreditava que isso era o que ele queria dela. (No primeiro Sexta-Feira 13, uma voz na cabeça dela diz: “Mate-a, mamãe!”) Ao invés disso, eu acho que é mais justo dizer que tanto a mãe quanto Jason são guiados por suas próprias emoções e revolta. A idéia de dissociação como a motivação principal dos assassinos é bastante explorada pelos realizadores dos primeiros filmes de Sexta-feira 13. No primeiro, a mãe acusa diretamente uma vítima de ter sido responsável pela morte de Jason. Mas a idéia de que foi só isso que levou Jason a matar durante mais de nove filmes é um tanto exasperante, quando não ofensiva. É melhor, penso eu, redirecionar as motivações de Jason de um adolescente específico que ele vê constantemente para uma inteira cultura que permitiu que ele se afogasse. Isso não é muito forçado: a mãe diz, no primeiro filme, que ela não permitiria que o acampamento fosse reaberto. Embora isso fizesse mais sentido se ela ao menos parecesse uma pessoa sã, nós conseguimos entender como seria facilmente possível que outro afogamento ocorresse.

Os jovens que Jason e sua mãe matam são hedonistas, plásticos, e completamente livres de preocupação e inteligência. A série me lembra algumas vezes A Máquina do Tempo de H. G. Wells, com os monstruosos Morlocks ocasionalmente capturando um dos belos e infantilizados Elois que eles criavam. Em nenhum momento, nenhum desses adolescentes nem sequer começa a sugerir que eles sejam diferentes disso. Nós conhecemos a única personagem que sobrevive quando ela chega atrasada para a reunião inicial dos monitores, uma negligência da qual ela pode facilmente se safar, já que está dormindo com o monitor chefe. Minha nossa!

Mencionei na análise anterior que uma das vítimas sonha que está chovendo sangue. Era algo próximo de um dos sinais do Apocalipse, e basicamente a menina era burra demais para compreender que aquilo significava o fim de tudo. Sem mencionar, é claro, o simbolismo do dia sexta-feira 13 como a traição e crucificação do Cristo. Na Parte 2, a heroína faz uma curiosa escolha de palavras ao descrever o retorno de Jason dos mortos como uma “ressurreição”. Será Jason uma representação do Cristo? Ou melhor, mantendo a linha apocalíptica, será ele uma figura do Anticristo? Esta não é uma concepção exagerada, na verdade. Embora eu confesse nunca haver terminado o livro, O Idiota de Dostoievski era com certeza uma imagem do Cristo que gostava de se relacionar com crianças. O personagem retardado, John Coffey, em The Green Mile, também era uma óbvia imagem do Cristo (“J.C.”). Vale notar, eu acho, que nós não temos nenhuma informação sobre o pai de Jason. Ele parece quase irrelevante.

É claro que não ignoro que há uma grande incoerência na idéia de Jason como uma representação do Anticristo. Acho que o Anticristo iria querer eliminar o bem e promover o mal. Jason simplesmente elimina os insignificantes. Ninguém em Sexta-feira 13 parte 2 representa qualquer coisa que possa ser interpretada como virtude. Toda a leitura apocalíptica cristã é em si mesmo uma espécie de piada sarcástica. Na medida em que a maldade de Jason reside tanto em sua inocência quanto o bem reside na inocência dos idiotas ao seu redor, chega-se à conclusão de que há ainda menos em sua motivação para os assassinatos do que à primeira vista. No entanto, vale a pena mencionar a interpretação de Jason como uma imagem do Anticristo, porque eu acredito que ela seja sintomática de nosso desejo de nos identificarmos com ele e não com suas jovens vítimas. Aqueles que acham perturbador o modo como os monstros dos filmes modernos – os Jasons, os Freddies, os Chuckies e os Michael Myers – se tornam famosos pela virtude de suas chacinas são os que não assistiram aos filmes: na grande maioria das vezes, os monstros são os personagens mais interessantes e empáticos de todo o filme. No Sexta-Feira 13 original, a morte só aparecia para mostrar o quão insignificante era a vida. A leitura usual de que as pessoas nos filmes de Sexta-feira 13 morrem porque fazem sexo – de que Jason representa uma justiça puritana sobre a usurpação conduzida pela vida adulta (ou seja, depois do sexo “a criança morre”), ou, por extensão, de que ele representa a AIDS (embora eu ache que esses filmes precedem por pouco a doença, principalmente entre a comunidade heterossexual) – é mais convincente neste filme.

Miner parece exalar um ódio muito extremo por mulheres neste filme. É o primeiro filme da série a mostrar qualquer tipo de nudez, mas há algo de mau gosto nessa nudez. Uma garota em especial nos é apresentada num shortinho muito curto e apertado e com uma camiseta bem agarrada aos seios. Mais tarde, ela vai nadar pelada e nós a observamos de longe. Onde, anteriormente, sua sexualidade era acentuada, aqui ela é quase não-existente. Acredito que na primeira cena citada nós a estejamos vendo diretamente sob a ótica de um adolescente excitado, e que na segunda a estejamos vendo da perspectiva do assexuado Jason, em ambas as cenas a garota é extremamente coisificada.

Em From Dusk Till Dawn, o coadjuvante honorário Tom Savini fala sobre como é fácil cravar uma estaca no peito das vampiras prostitutas porque “a carne delas é macia e suculenta”. De fato, os efeitos especiais de Tom Savini acentuam a maciez da carne. Quem pode esquecer da facilidade com que os zumbis em Despertar dos Mortos mastigavam os corpos de suas vítimas? Era de fato nauseantemente tátil. Acho a violência em Sexta-feira 13 parte 2 especialmente sexual, em grande parte graças à maquiagem de Tom Savini. Seu tratamento da carne nos faz pensar em sexo ou, no caso de Despertar dos Mortos, em comida. O corpo é reduzido a um objeto para saciar o apetite. (Compare com algo como a clássica nojeira de Peter Jackson Fome Animal, onde a ênfase é mais nos ligamentos e no pus – a última coisa em que você pensa é sexo e comida.) Não sei bem quem teve a idéia de usar armas perfurantes (um arpão e o furador de gelo, por exemplo) para as mortes, mas essa escolha também sexualiza a violência. Miner parece acentuar o movimento de pressão da arma para dentro da carne. Penetração, em outras palavras.

O conceito de Jason se assemelha, em certos elementos visuais (e talvez num elemento temático), ao de Ed Gein, o vovô oficial da violência sexual. Jason vive num barraco, onde ele mantém a cabeça mumificada de sua mãe, cuja insanidade criou a sua própria. Ele veste roupas interioranas. Nós refletimos que, não fosse o assassino uma entidade sobrenatural como Jason, ele seria uma espécie de maluco solitário. Para ser justo, digo que o filme original tem uma dívida visível para com Psicose, também inspirado em Gein. Dizem que a indumentária de Jason neste filme é uma homenagem a The Town that Dreaded Sundown, de 1976, do autor de Legend of Booggy Creek, Charles B. Pierce. Do que eu vi da obra de Pierce, e pelo que ouvi falar sobre The Town that Dreaded Sundown, há uma vibe caipira sendo canalizada. Eis o que compõe o tom Ed Gein.

Comparado ao original, são esses aspectos que dão a Sexta-feira 13 parte 2 um sabor um tanto mais oco e niilista. A violência é menos mistificada e inevitável do que fetichista e apaixonada. Não posso dizer com certeza se considero isso uma melhora com relação ao original – é apenas algo diferente, mas na mesma veia. O filme termina com uma tomada da cabeça mumificada da mãe de Jason que parece uma capa de álbum de banda metaleira. Bem apropriado, eu acho. - Alex Jackson.

*“Giallo” é um estilo de filme que fez sucesso nos anos 70 e fim dos 80. Havia livros policiais de mistério na Itália que tinham a capa amarela. Quando começaram a produzir filmes sobre assassinos em série sendo perseguidos por espertos detetives, a associação com os livros foi inevitável. Nascia então um novo estilo na cinematografia italiana, chamado “giallo” (amarelo). A maioria dos “giallos” é parecida: sempre existe um assassino em série (que geralmente é mostrado somente no final; durante a projeção vemos apenas suas mãos vestidas com luvas pretas de couro), um detetive que está na cola desse assassino e mortes chocantes, principalmente de mulheres (sempre com cenas de perseguição antes do ato), com exposição total ou parcial de corpos nus. O “giallo” foi muito importante para o gênero do terror. A maioria dos diretores italianos teve sua estréia cinematográfica com “giallos”, produzindo filmes magníficos que sempre exageravam no sangue. Foi tão popular em sua época que chegou a originar o gênero “slasher" (serial killer que persegue adolescentes), tão comum nos filmes de terror dos anos 80 e 90, mas sem o mesmo charme e violência.

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