
Uma vez, quando eu tinha meus 15 anos e lia revistas teen (importadas, veja bem, porque meu pop era britânico =p) eu li uma entrevista com o Stephen do Boyzone (lembra desse??? XD) em que ele disse que uma de suas coisas favoritas na vida eram os filmes da Disney. E continuava falando algo assim: "Eu amo Disney. Todo mundo ama Disney. Quem diz que não gosta de Disney está mentindo."
Eu pensei: não é que é mesmo?
Observe que ele não estava falando da corporação Disney -- essa é de praxe odiar, né? XD Ele se referia às histórias contadas pela Disney, às animações que fizeram a nossa cabeça quando éramos crianças em busca de referências para estar no mundo. Nesse aspecto, eu realmente não acredito em ninguém que disser que não gosta de Disney!
Mas, então, por que será que esses filmes exerceram tanto fascínio? Dica: post anterior.
As histórias que a Disney escolheu para compor seus clássicos filmes são histórias consagradas pela humanidade, mitos ancestrais que, com o tempo, foram se incorporando à cultura universal.
Na introdução de uma coletânea de contos de fadas da Jorge Zahar, Maria Tatar diz assim: "Quer tenhamos ou não consciência disso, os contos de fadas modelaram códigos de comportamento e trajetórias de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que nos forneceram termos com que pensar sobre o que acontece em nosso mundo".
O ilustrador britânico Arthur Rackham diz que os contos de fada se tornaram "parte de nosso pensamento e expressão cotidianos, e nos ajudam a moldar nossas vidas". Segundo ele, com certeza "estaríamos nos comportando de maneira muito diferente se Bela não tivesse jamais se unido à sua Fera..."
Mas, como disse o Joseph Campbell no post passado, o nosso mundo ficou muito diferente desde a criação desses contos, e foi necessária uma adaptação aos nossos valores atuais. Acho muito interessante como a Disney fez isso pra gente.
Vou usar como exemplo a história do meu filme favorito, que é exatamente... a Bela e a Fera. =)
A versão mais conhecida dessa história foi escrita na França por Madame de Beaumont, em 1756, para uma revista feminina. Na introdução ao conto original, Maria Tatar conta que "praticamente todas as culturas conhecem a história da Bela e a Fera e as diferenças que as duas personagens são obrigadas a harmonizar prar se unirem em matrimônio. A Bela e a Fera foi celebrada como a história exemplar do amor romântico, demonstrando seu poder de transcender as aparências físicas. Sob muitos aspectos, porém, é também uma trama rica em oportunidades para a expressão das angústias de uma mulher com relação ao casamento, e é possível que tenha circulado em certa época como uma história para aplacar os medos de moças que se viam obrigadas a casamentos arranjados com homens mais velhos."
Era uma vez um rico negociante que tinha três filhas. As três eram muito bonitas, mas a caçula (sempre a caçula!) era a mais bela - e por isso passou a ser chamada de Bela.
As irmãs da Bela se achavam muito por serem ricas. Só queriam andar com gente chique e todos os dias iam pra balada, que naquela época eram bailinhos e teatro. Já a Bela preferia ficar em casa, lendo seus livros.
Até aí, a Bela original está bem parecida com a Bela da Disney - bonita, simples, inteligente e curiosa. Apesar de a Bela da Disney não ter irmãos, ela é estranhada pelo povo de sua aldeia. Além disso, seu pai não é rico nem negociante, e sim um inventor velhinho e excêntrico. A relação dos dois é muito boa. Eles sabem que são tidos como os "lelés" da aldeia e por isso apoiam um ao outro. A Disney inventou ainda o Gaston, que incorpora o papel de pretendente da Bela e ainda tem um pouco das irmãs: bonitão por fora, podre por dentro.
No conto original, as filhas do negociante costumavam receber muitas propostas de casamento, mas sempre recusavam. As mais velhas, que se achavam, diziam que só se casariam com um duque ou, no mínimo, com um conde. Já a Bela dizia que era muito jovem pra casar e que preferia fazer companhia ao pai por mais alguns anos.
MAS ENTÃO!! Quebrou a bolsa e o pai de repente ficou pobre!!!! Pois é, os tempos já eram loucos. A família agora teria que se mudar pro campo e viver da labuta. As filhas mais velhas, claro, fizeram cara de nojinho e procuraram alguém que quisesse casar com elas pra sustentá-las, mas, hehehe... Agora ninguém queria mais, naturalmente. Todo mundo só ficou com pena da Bela, que era tão bonita e tão boazinha...
Toda família foi então pro campo e, enquanto a Bela ajudava o pai no trabalho, as suas irmãs ficavam pastando, acordando tarde, morrendo de tédio e com saudades das baladas.
Um dia, o pai da Bela recebeu uma carta dizendo que um navio com mercadorias suas tinha acabado de chegar no porto. As filhas mais velhas, quando souberam que o pai iria à cidade pra ganhar dinheiro, pediram um milhão de coisas: vestidos, perucas, bolsas, sapatos etc. O pai perguntou à Bela se ela não queria nada, e ela não queria mesmo, mas pediu uma rosa.
O pai foi à cidade, mas pelo jeito a mercadoria dele tinha sido retida pela alfândega (muambeiro?) e ele teve que voltar com o chapéu na mão. No caminho de volta, no entanto, ele se perdeu numa floresta escura do mal.
A Disney optou por não usar essa história de novelinha que mexe com meio social, elite, pobreza e blahblahblah, apesar de no filme a viagem do pai também ser motivada pela esperança de ganhar dinheiro e sair da aldeiazinha do interior. No filme, porém, o dinheiro é só um coadjuvante, um instrumento, e não o verdadeiro objeto do desejo, como no conto original. A família da Disney não quer saber de status social nem de luxos. O dinheiro servirá para que eles possam se libertar de um mundo pequeno demais para o tamanho dos sonhos deles (mais bonito e menos mesquinho, né?).
Bom, no original, o pai da Bela encontrou um castelo abandonado no meio da floresta. Lá dentro, ele viu a mesa posta, comeu, viu um quarto arrumado, dormiu, e no dia seguinte ia embora. Na saída, porém, havia um jardim de rosas, e ele arrancou uma pra levar pra Bela. Mas aí apareceu a Fera, pau da vida porque foi super gente boa com o velhinho, dando comida e cama pra ele às escondidas, e em troca ele ia e depredava o jardim dela! Agora ele tinha que morrer!
O pai da Bela explicou que só precisava de uma rosinha pra levar pra filha, então a Fera disse que, se ele quisesse, poderia trazer uma filha pra morrer em seu lugar. (Gente, olha como esse povo era ingênuo: a Fera manda o pai ir falar com as filhas e faz ele jurar que, se elas não quiserem morrer, ele vai voltar pra Fera matar ele. XD E o pai ainda jura! XD Realmente, hoje em dia não ia colar!)
Chegando em casa, o pai contou tudo às filhas. É claro que quem se ofereceu pra morrer foi a Bela, dizendo que é melhor ser devorada por um monstro do que sofrer com a morte do querido papai.
Então lá se foi a Bela, pro castelo da Fera. Ao chegar, ela viu a mesa posta, e pensou que a Fera queria ela bem gordinha pra ser devorada. No meio da refeição, chegou a Fera, só pra dizer que a Bela era uma moça muito boa por ter aceitado morrer pelo pai.
Para surpresa da Bela, ela tinha um quarto com seu nome preparado no castelo. Ela percebeu então que a Fera não queria comê-la, e sim viver com ela, o que era muito mais assustador!
No dia seguinte, na hora do almoço, a Bela e a Fera tiveram sua primeira conversa, que é muito interessante (e hilária):
"Bela", disse o monstro, "incomodo se a vejo cear?"
"É o senhor quem reina neste castelo", disse a Bela, tremendo.
"Não", respondeu a Fera, "não há aqui outra senhora além de Bela. Caso a esteja aborrecendo, uma palavra sua e vou-me embora. Diga, a senhorita me acha muito feio?"
"Acho sim", disse a Bela (huahahua). "Não sei mentir. Mas acredito que é muito bom."
"Tem razão", disse o monstro, "mas além de feio, não possuo inteligência; afinal não passo de um animal." (XD)
"Não pode ser um animal se acha que não tem inteligência", replicou Bela. "Um tolo nunca sabe que é tolo."
"Então coma, Bela", disse o monstro, "e trate de não se aborrecer na sua casa. Pois tudo isto é seu, e eu ficaria desolado se você não estivesse contente."
"O senhor é mesmo bondoso", disse a Bela. "Confesso que seu coração me agrada muito. Quando penso nele, o senhor não me parece tão feio."
"Ah, senhorita, é verdade", respondeu a Fera. "Tenho um bom coração, mas sou um monstro."
"Muitos homens são mais monstruosos", disse Bela, "e gosto mais do senhor com essa aparência que daqueles que, por trás de uma aparência de homens, escondem um coração falso, corrompido, ingrato."
"Se eu fosse inteligente", respondeu a Fera, "agradeceria com um grande elogio. Mas sou um idiota e tudo que posso dizer é que fico muito grato."
Depois desse diálogo, a Bela perdeu o medo da Fera. Mas voltou a sentir quando a Fera a pediu em casamento. Ela, muito sincera, recusou o pedido. A Fera se conformou e voltou a se esconder.
E o tempo foi passando, com a Fera pedindo a Bela em casamento de vez em quando e a Bela recusando. Ela dizia que até gostaria de se casar com ele, se ele não fosse tão feio, mas que, ao menos, eles seriam sempre amigos.
Bela vivia feliz com a Fera, mas tinha saudades do pai. A Fera, então, resolveu deixá-la visitar a família, pedindo que ela não se demorasse.
Quando a Bela chegou em casa, suas irmãs vieram recebê-la casadas e infelizes. Uma tinha se casado com um cara bonitão que passava o tempo todo se olhando no espelho e ignorava a mulher. A outra tinha arranjado um cara inteligente, mas que só usava a inteligência pra espicaçar todo mundo, a começar pela esposa. Já sacou a moral da história?
A Bela então contou pra todo mundo que a Fera era muito boazinha e a fazia muito feliz, embora insistisse nos pedidos de casamento. As irmãs, cheias de inveja, resolveram segurar Bela por bastante tempo em casa, esperando que a Fera ficasse com raiva da Bela e a devorasse.
Um dia, ainda na casa do pai, Bela pensava na Fera, e teve esse insight:
"Não é muita maldade minha fazer sofrer a Fera que é só bondade para mim? É culpa dele se é tão feio, se não é muito inteligente? Ele é bom, e isso vale mais que todo o resto. Por que não quis me casar com ele? Seria mais feliz ao lado dele que minhas irmãs com seus maridos. Não é nem a beleza, nem a inteligência de um marido que fazem uma mulher feliz. É o caráter, a virtude, a bondade. A Fera tem todas essas boas qualidades. Não o amo; mas tenho por ele estima, amizade e gratidão. Vamos, é errado fazê-lo infeliz. Eu me condenaria o resto da vida."
Pausa para reflexão.
É isso mesmo. No conto, a Bela decidiu se casar com a Fera por pena. A moral da história é que uma mocinha pode ser feliz casada com alguém que não ama, desde que ele seja uma boa pessoa. Ora, ouso dizer que hoje o mundo é muito mais romântico! A Disney fez com que a Bela se apaixonasse pela Fera, apesar de sua aparência e de todos os seus defeitos, e aí sim eles puderam se casar, depois que a Fera se revelou um príncipe encantado.
A história original termina com a Bela voltando ao castelo e encontrando a Fera quase morrendo (literalmente) de saudades. Mas é só a Bela contar pra Fera que resolver casar, que o feitiço se quebra e o monstro vira príncipe. Ele tinha sido enfeitiçado por uma fada malvada, que havia lhe tirado a beleza e a inteligência até que ele encontrasse uma moça disposta a casar com ele.
Então eles se casam e vivem felizes para sempre, e as irmãs da Bela são transformadas em estátuas (por uma fada que não tinha nada a ver com a história) e postas na frente do castelo pra ficar vendo a felicidade da Bela.
Lindo final, não? Ainda tem uma vingancinha catártica. Tá certo que no filme da Disney o Gaston morre, mas ele mereceu mesmo - tentou chantagear a Bela, foi malvado com o pai dela, apunhalou a Fera pelas costas...
Na história como é contada hoje, o príncipe é transformado em Fera por ser muito egoísta, mimado e grosseiro, e só volta à forma humana quando aprende a amar e tem seu amor retribuído. Isso só aconteceu porque a Fera se tornou alguém digno de ser amado.
E foi assim que o valor do casamento por amor, e não por conveniência ou por resignação, foi incorporado à nossa mitologia moderna...
<3
[Pra quem quiser conhecer os contos de fadas originais, tem alguns livros bem legais, como "Contos de Fadas", da Jorge Zahar, e "A Psicanálise dos Contos de Fadas", da Paz e Terra, escrito pelo Bruno Bettelheim.]
Nenhum comentário:
Postar um comentário