Para levantar um pouco o moral da gente.
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"Não me é possível fornecer conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. (...) Do grande número de aspectos, quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral.
Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do mundo.
O Brasil, pela sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e de raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranqüilo do mundo. Nele ainda são nitidamente reconhecíveis, já nas ruas, as diversas raças e sub-raças, de que é constituída a sua população. Aqui vivem os descendentes dos portugueses que conquistaram e colonizaram o Brasil, aqui vive a descendência aborígene dos que habitam o interior do país desde épocas imemoráveis, aqui vivem milhões provindos dos negros que nos tempos da escravatura foram trazidos da África, e milhões de estrangeiros, portugueses, italianos, alemães e até japoneses. Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus, os de cor branca, parda ou vermelha, contra os da raça amarela, e que as maiorias e as minorias em luta constante pelos seus direitos e prerrogativas se hostilizassem. Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea. Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo — e a importância desse experimento parece-me modelar — o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema. Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo. O que em outros países está teoricamente estabelecido apenas no papel e no pergaminho, a absoluta igualdade dos cidadãos na vida pública, bem como na vida privada, aqui existe de fato, na escola, nos empregos, nas igrejas, nas profissões e na vida militar, nas universidades, nas cátedras. É tocante ver já as crianças que apresentam todos os matizes de cor da pele humana, voltarem da escola de braço dado, e essa união de corpo e de alma se estende até as classes mais elevadas, nas academias e nos empregos públicos. (...) A mescla, suposta destrutiva, esse horror, esse “pecado contra o sangue” na opinião dos nossos endemoninhados teóricos de raças, é aqui meio de união de uma civilização nacional, conscientemente utilizado. (...) Certa brandura e uma suave melancolia criam aqui um tipo muito próprio e oposto ao do norteamericano, que é mais enérgico e mais ativo. O que aqui “se destrói”, são apenas os contrastes fortes e, por isso, perigosos. Essa dissolução sistemática dos grupos mais “nacionais“ que “raciais”, que aqui são unidos e sobretudo unidos para a luta, facilitou extremamente, a criação duma consciência nacional única, e é surpreendente que a segunda geração já se sinta só brasileira. Em geral, o filho de estrangeiro é nacionalista. São sempre os fatos, com sua força inegável e visível, que contraditam as teorias dos dogmáticos. Por isso, o experimento do Brasil com sua completa e consciente negação de todas as diferenças, presumidas e insignificantes, de raças e de cores, por seu resultado visível, é a contribuição talvez mais importante para dar cabo dum desvario que, mais do que qualquer outro, acarretou intranquilidades e desgraças ao mundo.
E agora se sabe por que o indivíduo sente a alma tão aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que esse efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que, por assim dizer... de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar. Mas em breve se reconhece que essa disposição harmônica da natureza aqui se transmitiu ao modo de vida de uma nação inteira. Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. A terrível tensão que há um decênio repuxa os nossos nervos, aqui desaparece, quase completamente; todos os antagonismos, mesmo os sociais, aqui, são muitíssimo menos acentuados e não têm uma seta envenenada. Aqui a política com todas as perfídias ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir. Logo que alguém chega. a esta terra, a primeira surpresa, que depois todos os dias felizmente se renova, é a de ver a maneira amistosa, e não fanática, pela qual os entes humanos vivem neste gigantesco território. Sem querer, respira ele de novo, sente-se bem por haver saído do ar mefítico do ódio entre raças e classes inimigas, e de se achar nesta atmosfera mais humana.
(...)
Longe de mim querer dar a ilusão de que no Brasil já tudo se acha no estado ideal. Muita coisa ainda se acha em início e em transição. (...) Quem chega pela primeira vez ao país, terá que primeiramente adaptar-se, na vida quotidiana, a pequenas faltas de pontualidade e inexatidões, (...) e certos viajantes que vêem o mundo, observando-o do hotel e do auto apenas, podem dar-se ainda ao luxo de regressar do Brasil com a presunção de superioridade em civilização e de achar muita coisa neste país atrasada e deficiente. Mas os acontecimentos dos últimos anos alteraram essencialmente a nossa opinião sobre o valor das palavras “civilização e cultura”. Já não estamos dispostos a simplesmente equipará-las à idéia de “organização” e "conforto". Nada favoreceu mais esse erro funesto do que a estatística que, como ciência mecânica, calcula em quanto importa num país a fortuna do povo e quanto é, na mesma, a parte de cada um; quantos autos, quantos banheiros, quantos rádios e quantos seguros correspondem a cada habitante. De acordo com essas tabelas os povos mais cultos e mais civilizados seriam os que têm a maior produção, o maior consumo e o maior número de fortunas individuais. Mas falta nessas tabelas um elemento valioso, o cômputo do espírito de humanidade, que, em nossa opinião, representa o mais importante índice da cultura e da civilização. Vimos que a mais elevada organização não impediu povos de aplicarem essa organização unicamente no sentido da brutalidade, ao invés de o fazerem no sentido humano; vemos que a nossa civilização, no curso dum quarto de século, pela segunda vez, está periclitando. Por isso já não estamos dispostos a reconhecer uma classificação de acordo com o valor industrial, financeiro e militar dum povo, mas sim avaliar o grau de superioridade de uma nação pelo seu espírito pacífico e humanitário.
Nesse sentido — o mais importante, segundo a minha opinião — o Brasil parece-me um dos países mais modelares e, por isso, uns dos mais dignos de estima. É um país que odeia a guerra e, ainda mais, que quase não a conhece. (...) O seu orgulho e os seus heróis não são apenas guerreiros, mas estadistas, como Rio Branco e Caxias, que com prudência e firmeza souberam evitar e acabar guerras. (...) Nunca a paz do mundo foi ameaçada por sua política, e, mesmo numa época de incertezas como a atual, não é possível imaginar que o princípio básico de sua idéia nacional, esse desejo de entendimento e de acordo, se possa jamais alterar. Esse desejo de conciliação, essa atitude humanitária, não tem sido o sentimento casual dos diferentes chefes e dirigentes do país; é o produto natural dum predicado do povo, da tolerância natural do brasileiro, a qual no curso da sua história sempre se confirmou. (...) Quem quer que governe o povo brasileiro, inconscientemente é forçado a adaptar-se a seu espírito de conciliação; não constitui uma casualidade o fato de o Brasil — que entre todos os países da América durante decênios foi a única monarquia ter tido como imperador o mais democrata, o mais liberal de todos os soberanos. E hoje, que o Governo é considerado como ditadura, há aqui mais liberdade e mais satisfação individual do que na maior parte dos nossos países europeus. Por isso na existência do Brasil, cuja vontade está dirigida unicamente para um desenvolvimento pacífico, repousa uma das nossas melhores esperanças de uma futura civilização e pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura. Mas onde se acham em ação forças morais, é nosso dever fortalecermos essa vontade. Onde na nossa época de perturbação ainda vemos esperança de um futuro novo em novas zonas, é nosso dever indicarmos esse país, essas possibilidades."
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Escrito em 1940/41, pelo escritor europeu Stefan Zweig, que veio morar aqui fugindo da guerra. É a introdução ao seu livro "Brasil: o país do futuro", que pode ser lido na íntegra
aqui.