segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O primeiro punido

Posto pra todo mundo ficar sabendo que, sim, gente inocente foi vítima de uma brutalidade sem sentido na nossa capital. Foi o irmão da minha amiga Cacá, uma pessoa de bem e perfeitamente pacífica cujo crime foi se manifestar contra a corrupção vergonhosa de um governador em quem eu não votei, e sobre quem ainda alertei os que nele pretendiam votar. Estou muito chateada com tudo isso. E acho que todos precisam saber o que aconteceu.

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Mensagem do pai do Zé:

Amigos,
Ainda não superei a minha revolta contra a brutalidade que fizeram com o meu filho. Tenho orgulho dele.
Continuo indignado com a impunidade dos corruptos e dos repressores bestiais, fascistas.
Leiam meu artigo publicado no Correio Braziliense de hoje e vejam abaixo as cenas de violência contra ele.
Vejam a repercussão, também no Jornal Nacional da Globo.


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Correio Braziliense
Brasília, sábado, 12 de dezembro de 2009.

O primeiro punido

Quarta-feira, ato contra a corrupção.

Logo de manhã, minha família e eu, indignados e revoltados contra o maior escândalo político de toda a história do Distrito Federal, nos preparamos para pacificamente protestar contra o “suposto” roubo de dinheiro do povo. Fizemos cartazes e fomos todos à Praça do Buriti. Lá escutávamos dos oradores que organizaram o ato:

– O governador, as secretarias de governo, a Câmara Legislativa, o Tribunal de Justiça do DF , o Tribunal de Contas do DF, toda a esfera de poder do DF está dominada e contaminada pela corrupção.

Enquanto os discursos terminavam, todos os jovens, boa parte dos sindicalistas e cidadãos, abandonaram os oradores e decidiram paralisar o trânsito. Distribuíam panfletos e adesivos para os carros quando centenas de policiais, depois de muito empurra-empurra, reabriram o trânsito. Os manifestantes correram para o outro lado da pista e paralisaram novamente o trânsito. Aí foi a hora de a cavalaria intervir. Em posição de ataque, foram para cima dos que faziam o protesto, pisoteando e ferindo muitas pessoas. Em seguida vieram os policiais do Bope, lançando estrondosas bombas de gás lacrimogêneo e partindo para cima dos manifestantes, distribuindo fartamente cacetadas e chutes. A massa ali presente se dispersou pelo canteiro central.

Reuni minha família e disse:

– A corrupção ganhou a guerra contra os desarmados. Vamos embora.

Estávamos voltando para pegar o carro quando o meu filho mais velho, José Ricardo, se aproximou de um aglomerado de umas 10 pessoas, que questionavam os comandantes da operação. Perguntavam o porquê de tanta violência e, em específico, estavam revoltadas com o pisoteio de uma mulher pela cavalaria. José Ricardo se manifestou:

— Ato covarde.

Um policial militar ensandecido voou para cima de José rasgando-lhe a camisa e esmurrando-o. Detalhe: o PM ensandecido é o coronel Silva Filho, comandante responsável pela tranquilidade durante o ato. Imobilizaram, algemaram e entregaram José a uma dúzia de policiais do Bope. A partir daí os atos de brutalidade, selvageria e humilhação se sucederam: socos, tapas, chutes, cacetadas, até ser jogado violentamente no camburão. Enquanto cidadãos e jornalistas filmavam a cena, policiais do Bope atiraram nos pés dos cinegrafistas para impedir o registro do covarde espancamento (vejam vídeo: http://vimeo.com/8087713). Já no camburão José escutou pelo rádio do carro da PM que o motorista era o sargento Cássio. José perguntou:

— Por que estou preso? Não agredi ninguém, não sou bandido, não sou corrupto.

Cássio:

— Cala a boca, moleque! Se eu te encontrar algum dia por aí, eu te assassino.

Com este episódio ficou bastante claro para mim que, no exercício de 24 anos de democracia, não conseguimos minimamente mudar a cultura da arbitrariedade, da brutalidade e da violência da nossa polícia. Uma cultura consolidada nos 21 anos de dita dura militar. É um sentimento altamente frustrante e desanimador.

Fomos informados que José tinha sido levado para a 2ªDP (Asa Norte) e fomos para lá. Como ali não estava, fomos para a 5ªDP (Setor Central), onde um policial civil consultou todas as delegacias e nada do meu filho. Entramos em pânico e acionamos senadores, deputados, instituições dos direitos humanos. José foi detido em torno das 13h e só apareceu na 5ª DP às 16h15. Ficou esse tempo todo algemado dentro de um camburão que fazia pequenos deslocamentos, sem água e sem alimento.

Encontrei meu filho dentro da delegacia, sem camisa e com dores. Com escoriações no pescoço, nas costas, nos braços e com dores na costela e na boca do estômago, devido aos socos sofridos. Mas ele estava de cabeça erguida e altivo. Relatou todos estes fatos em seu depoimento e olhou de frente e nos olhos de seus algozes, que estavam também na delegacia. Ao anoitecer saímos da 5ªDP e fomos para o IML e depois ao tribunal que julga ria as representações que José fez contra a violência que sofreu por parte da PM do Distrito Federal. Na representação foram anexados vídeos, fotos e depoimentos de várias testemunhas que presenciaram a brutalidade contra ele. Em torno da meia-noite o juiz entendeu que havia necessidade de ouvir melhor os policiais, pois seus depoimentos estavam muito sucintos, e determinou o retorno do processo à 5ª DP.

José Ricardo foi punido. Foi agredido violentamente e só depois foi dada a ordem d e prisão. Aplicaram uma pena (ou tortura?) a ele: prisão em um camburão, abafado e quente, por mais de três horas. Ameaçaram-no de morte.

De todo o megaescândalo da corrupção no DF, só comparável ao “Fora Collor”, já temos o primeiro punido. Vamos aguardar com muita ansiedade o próximo a ser punido.


 


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

!!!!!!


Geeeente, olha que perturbador!!!!



Vai, pode perguntar: que que tem de pertubador nisso? A gente vê gostosa semi-nua o tempo todo por aí.

Gente, close nela!


Reconheceu? Não? Juro que é!

É a Maria Joaquina!!!!! o_O


Um dos nossos ícones de infância!!!!!! Convertido em atriz jovem e sensual genérica!!!!!

Eu te odeio, fama. ;_;

sábado, 24 de outubro de 2009

"Hell is a teenage girl"

[Aviso: nível médio de spoiler.]
 
Vi Garota Infernal (Jennifer's Body) ontem e, apesar de não ter sido um bom filme de terror, não sinto que desperdicei meu dinheiro nem que esse filme vá passar batido na minha história pessoal do cinema.

É o seguinte: Jennifer's Body foi roteirizado pela Diablo Cody (nome legal!), a mesma de Juno. Só isso já garante que alguma coisa presta nesse filme. Assim como Juno, sinto que é um daqueles filmes que vão marcar esta geração de (pré-)adolescentes. Me lembra um pouco o caso do Jovens Bruxas (The Craft), que marcou a minha geração. Era um filme de suspense com uma pegada mega jovem, sobre as agruras da pubescência e o risco de brincar com o sobrenatural. Ah, e uma trilha sonora super da hora. Bem teen.

Tudo isso, Jennifer's Body também tem, com o plus de personagens inteligentes e eloqüentes. Os diálogos e a narração são pontuados de pequenas sacadas espertas e irônicas, como "o inferno é uma garota adolescente"; "um drink chamado 11 de setembro"; "uma tragédia que deixou todos com uma ereção enorme" (essa foi ótima!), e por aí vai.

É um filme engraçado, que tira sarro dos clichês e bizarrices do terror pop, como a indefectível existência de uma seção de ocultismo na biblioteca da escola (quando era mais nova, eu sempre me perguntava por que diabos as bibliotecas aqui no Brasil não tinham livros de bruxaria e manuais de exorcismo). Ao mesmo tempo, é uma história que se leva a sério, com momentos dramáticos, sem banalização das mortes e das tragédias pessoais. A protagonista e narradora, Needy (lol) fica seriamente perturbada ao longo do filme; os pais sempre aparecem desesperados quando descobrem o filho morto; a população da cidadezinha sente o choque dos eventos (a tal da "ereção", como ironicamente define Needy). Um momento bonitinho: Needy, segurando o namorado Chip nos braços, todo ensangüentado, diz a ele chorosa "pensei que você estivesse morto". Ele responde, moribundo: "acho que eu tinha morrido, mas voltei quando ouvi sua voz". Awww... Gente, foi uma cena muito adorável, sério. Uma das melhores coisas desse filme é que, até em cenas como essa, ele consegue ser sério sem ser melodramático.

Então, em termos de comédia e dramaticidade, o filme se sustenta, e assim consegue escapar do rol dos besteróis irrelevantes à la Todo Mundo em Pânico, e se aproxima mais de Jovens Bruxas e de Juno. Ponto também para a referência a A Morte do Demônio (The Evil Dead), o cult de Sam Raimi, do qual eu já falei aqui uma vez!

Acho que a referência serviu para tentar aproximar a protagonista Needy do Ash de Evil Dead. Como Needy, Ash é um garoto normal que sofre o azar de ter seus melhores amigos possuídos por demônios, e se vê na incômoda posição de ter de lutar com eles e matá-los. É mais ou menos o sofrimento de Needy, cujo dilema é considerar a profunda amizade que sempre teve com Jennifer, ou exterminar o demônio que está devorando os meninos da cidade. No fundo, é claro, o filme é sobre isso: o relacionamento descompensado entre Jennifer e Needy. As duas são garotas completamente diferentes: Jennifer é a cheerleader desejada e trepadora, e Needy é a nerd sem-sal. Como elas conseguem ser amigas? "Amizade de parquinho é para sempre", segundo Needy.
Pelo panorama, você pensaria que a possuída deveria ser Needy: ela seria a vítima da baixa estima, da vergonha da virgindade, da falta de amigos e de popularidade, da sombra criada pela luz de Jennifer. Mas não. Needy está passando por uma fase bem resolvida no início do filme, graças a seu namorado super bacana. Ah, por sinal, Jennifer não namora. Entendeu agora?


"Por que eu, a gostosa, estou solteira, e você, a quatro-olhos, tem um namorado legal e bonitinho? 
Vou seduzi-lo e então devorá-lo para reafirmar minha superioridade!"
 



Pois é. Agora deu pra sacar tudo.

Outro filme do qual Jennifer's Body se aproxima é Possuída (Ginger Snaps), sobre duas irmãs outcasts. Uma delas é mordida por um lobisomem e passa por uma transformação que a deixa, pra dizer o mínimo, sexy e pegadora, enquanto a outra continua esquisita e preocupada com a irmã. A lobisgarota, é claro, começa a (adivinhou) seduzir e comer garotos. É um bom filme independente e interessante como filme de lobisomem, com o mesmo tom moderno-e-não-idiota-para-adolescentes.


Infelizmente, em termos de terror e trash, Jennifer não traz muito. Quer dizer, não se você já tiver passado dos, digamos, 12 anos. Como já disse, acredito que esse filme seja impactante para os tweens. Fiquei ressentida da falta de sangueira, do excesso de CG'ing e da timidez com que os corpos estraçalhados são mostrados. Gostei, no entanto, de uma das falas usadas para descrever o estado de mutilação de uma vítima: "Ouvi dizer que Fulano ficou parecendo uma lasanha com dentes".

Mas, enfim, é um filme a ser experimentado. Uma fábula adolescente moderna, com toques de O Exorcista, Segundas Intenções e, na vida real, Elizabeth Bathory. (Não, não vou dizer que parece com Carrie, A Estranha. Não parece. A única semelhança é que tem um baile. Parem de comparar com Carrie.)


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

"Deus da Bíblia é má pessoa", diz José Saramago




O escritor português José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em 1998, voltou a criticar a Bíblia nesta quarta-feira, reavivando a polêmica levantada por seus comentários por ocasião do lançamento de seu novo livro, "Caim".

O romancista português, conhecido por suas posições de esquerda e seu gosto pela provocação, disse no domingo que a Bíblia é um "manual de maus costumes". Seu mais recente livro conta, com bastante ironia, a história de Caim, filho de Adão e Eva que matou o irmão Abel.

Suas declarações irritaram membros da Igreja Católica, que o acusou de ter ofendido os católicos e de fazer uma "operação publicitária".

"O Deus da Bíblia é vingativo, rancoroso, má pessoa e não é confiável", declarou Saramago, de 86 anos, nesta quarta-feira.

"Na Bíblia há crueldade, incestos, violência de todo tipo, carnificinas. Isso não pode ser desmentido; mas bastou que eu o dissesse para suscitar esta polêmica", ressaltou.

"Há incompreensões, já sabemos que sim, resistências, também sabemos que sim, ódios antigos", disse Saramago, durante uma entrevista coletiva perto de Lisboa.

"Sou uma pessoa que gera anticorpos em muita gente, mas não ligo. Continuo fazendo meu trabalho".

E voltou suas baterias contra a Igreja.

"O que eles querem e não conseguem é colocar ao lado de cada leitor da Bíblia um teólogo que diga à pessoa que aquilo não é assim, que é preciso fazer uma interpretação simbólica, e a isto chamam exegese", estimou.

Mas, continuou, "o direito de refletir sobre isso de todos nós", e denunciou "a intolerância das religiões organizadas".

"Às vezes dizem que sou valente. Talvez seja valente porque hoje não há Inquisição. Se houvesse, talvez não teria escrito este livro. Me apóio na liberdade de expressão para poder escrever", ponderou o escritor, que diz estar preparando um novo livro para o ano que vem sobre um tema completamente diferente.

"Espero que não seja tão polêmico. Não ando atrás das polêmicas. Tenho convicções e as expresso", concluiu o autor de "Ensaio sobre a Cegueira". 


Cain and Abel, atribuí­do a Simon Vouet e Pietro Novelli, 1620.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Brasil, o país do futuro (em 1940)



Para levantar um pouco o moral da gente.

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"Não me é possível fornecer conclusões definitivas, predições e profecias sobre o futuro econômico, financeiro e político do Brasil. Os problemas do Brasil relativos à economia, à sociologia e à civilização são tão novos, tão especiais e, sobretudo, dispostos de modo tão indistinto, em conseqüência da vastidão do país, que cada um deles exigiria um grupo de especialistas para esclarecê-lo inteiramente. (...) Do grande número de aspectos, quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral.

Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro. O Brasil resolveu-o duma maneira que, na minha opinião, requer não só a atenção, mas, também a admiração do mundo.

O Brasil, pela sua estrutura etnológica, se tivesse aceito o delírio europeu de nacionalidades e de raças, seria o país mais desunido, menos pacífico e mais intranqüilo do mundo. Nele ainda são nitidamente reconhecíveis, já nas ruas, as diversas raças e sub-raças, de que é constituída a sua população. Aqui vivem os descendentes dos portugueses que conquistaram e colonizaram o Brasil, aqui vive a descendência aborígene dos que habitam o interior do país desde épocas imemoráveis, aqui vivem milhões provindos dos negros que nos tempos da escravatura foram trazidos da África, e milhões de estrangeiros, portugueses, italianos, alemães e até japoneses. Segundo o modo de pensar europeu, seria de esperar que cada um desses grupos assumisse atitude hostil contra os outros, os que haviam chegado primeiro contra os que chegaram mais tarde, os brancos contra os negros, os brasileiros contra os europeus, os de cor branca, parda ou vermelha, contra os da raça amarela, e que as maiorias e as minorias em luta constante pelos seus direitos e prerrogativas se hostilizassem. Com a maior admiração verifica-se que todas essas raças, que já pela cor evidentemente se distinguem umas das outras, vivem em perfeito acordo entre si e, apesar de sua origem diferente, porfiam apenas no empenho de anular as diversidades de outrora, a fim de o mais depressa e o mais completamente se tornarem brasileiras, constituindo nação nova e homogênea. Da maneira mais simples o Brasil tornou absurdo — e a importância desse experimento parece-me modelar — o problema racial que perturba o mundo europeu, ignorando simplesmente o presumido valor de tal problema. Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a quimera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há séculos assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo. O que em outros países está teoricamente estabelecido apenas no papel e no pergaminho, a absoluta igualdade dos cidadãos na vida pública, bem como na vida privada, aqui existe de fato, na escola, nos empregos, nas igrejas, nas profissões e na vida militar, nas universidades, nas cátedras. É tocante ver já as crianças que apresentam todos os matizes de cor da pele humana, voltarem da escola de braço dado, e essa união de corpo e de alma se estende até as classes mais elevadas, nas academias e nos empregos públicos. (...) A mescla, suposta destrutiva, esse horror, esse “pecado contra o sangue” na opinião dos nossos endemoninhados teóricos de raças, é aqui meio de união de uma civilização nacional, conscientemente utilizado. (...) Certa brandura e uma suave melancolia criam aqui um tipo muito próprio e oposto ao do norteamericano, que é mais enérgico e mais ativo. O que aqui “se destrói”, são apenas os contrastes fortes e, por isso, perigosos. Essa dissolução sistemática dos grupos mais “nacionais“ que “raciais”, que aqui são unidos e sobretudo unidos para a luta, facilitou extremamente, a criação duma consciência nacional única, e é surpreendente que a segunda geração já se sinta só brasileira. Em geral, o filho de estrangeiro é nacionalista. São sempre os fatos, com sua força inegável e visível, que contraditam as teorias dos dogmáticos. Por isso, o experimento do Brasil com sua completa e consciente negação de todas as diferenças, presumidas e insignificantes, de raças e de cores, por seu resultado visível, é a contribuição talvez mais importante para dar cabo dum desvario que, mais do que qualquer outro, acarretou intranquilidades e desgraças ao mundo.

E agora se sabe por que o indivíduo sente a alma tão aliviada logo que pisa esta terra. Primeiramente, pensa que esse efeito calmante é apenas alegria dos olhos, e gozo dessa beleza sem par que, por assim dizer... de braços abertos chama a si o indivíduo que acaba de chegar. Mas em breve se reconhece que essa disposição harmônica da natureza aqui se transmitiu ao modo de vida de uma nação inteira. Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. A terrível tensão que há um decênio repuxa os nossos nervos, aqui desaparece, quase completamente; todos os antagonismos, mesmo os sociais, aqui, são muitíssimo menos acentuados e não têm uma seta envenenada. Aqui a política com todas as perfídias ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pensar e sentir. Logo que alguém chega. a esta terra, a primeira surpresa, que depois todos os dias felizmente se renova, é a de ver a maneira amistosa, e não fanática, pela qual os entes humanos vivem neste gigantesco território. Sem querer, respira ele de novo, sente-se bem por haver saído do ar mefítico do ódio entre raças e classes inimigas, e de se achar nesta atmosfera mais humana.

(...)

Longe de mim querer dar a ilusão de que no Brasil já tudo se acha no estado ideal. Muita coisa ainda se acha em início e em transição. (...) Quem chega pela primeira vez ao país, terá que primeiramente adaptar-se, na vida quotidiana, a pequenas faltas de pontualidade e inexatidões, (...) e certos viajantes que vêem o mundo, observando-o do hotel e do auto apenas, podem dar-se ainda ao luxo de regressar do Brasil com a presunção de superioridade em civilização e de achar muita coisa neste país atrasada e deficiente. Mas os acontecimentos dos últimos anos alteraram essencialmente a nossa opinião sobre o valor das palavras “civilização e cultura”. Já não estamos dispostos a simplesmente equipará-las à idéia de “organização” e "conforto". Nada favoreceu mais esse erro funesto do que a estatística que, como ciência mecânica, calcula em quanto importa num país a fortuna do povo e quanto é, na mesma, a parte de cada um; quantos autos, quantos banheiros, quantos rádios e quantos seguros correspondem a cada habitante. De acordo com essas tabelas os povos mais cultos e mais civilizados seriam os que têm a maior produção, o maior consumo e o maior número de fortunas individuais. Mas falta nessas tabelas um elemento valioso, o cômputo do espírito de humanidade, que, em nossa opinião, representa o mais importante índice da cultura e da civilização. Vimos que a mais elevada organização não impediu povos de aplicarem essa organização unicamente no sentido da brutalidade, ao invés de o fazerem no sentido humano; vemos que a nossa civilização, no curso dum quarto de século, pela segunda vez, está periclitando. Por isso já não estamos dispostos a reconhecer uma classificação de acordo com o valor industrial, financeiro e militar dum povo, mas sim avaliar o grau de superioridade de uma nação pelo seu espírito pacífico e humanitário.

Nesse sentido — o mais importante, segundo a minha opinião — o Brasil parece-me um dos países mais modelares e, por isso, uns dos mais dignos de estima. É um país que odeia a guerra e, ainda mais, que quase não a conhece. (...) O seu orgulho e os seus heróis não são apenas guerreiros, mas estadistas, como Rio Branco e Caxias, que com prudência e firmeza souberam evitar e acabar guerras. (...) Nunca a paz do mundo foi ameaçada por sua política, e, mesmo numa época de incertezas como a atual, não é possível imaginar que o princípio básico de sua idéia nacional, esse desejo de entendimento e de acordo, se possa jamais alterar. Esse desejo de conciliação, essa atitude humanitária, não tem sido o sentimento casual dos diferentes chefes e dirigentes do país; é o produto natural dum predicado do povo, da tolerância natural do brasileiro, a qual no curso da sua história sempre se confirmou. (...) Quem quer que governe o povo brasileiro, inconscientemente é forçado a adaptar-se a seu espírito de conciliação; não constitui uma casualidade o fato de o Brasil — que entre todos os países da América durante decênios foi a única monarquia ter tido como imperador o mais democrata, o mais liberal de todos os soberanos. E hoje, que o Governo é considerado como ditadura, há aqui mais liberdade e mais satisfação individual do que na maior parte dos nossos países europeus. Por isso na existência do Brasil, cuja vontade está dirigida unicamente para um desenvolvimento pacífico, repousa uma das nossas melhores esperanças de uma futura civilização e pacificação do nosso mundo devastado pelo ódio e pela loucura. Mas onde se acham em ação forças morais, é nosso dever fortalecermos essa vontade. Onde na nossa época de perturbação ainda vemos esperança de um futuro novo em novas zonas, é nosso dever indicarmos esse país, essas possibilidades."

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Escrito em 1940/41, pelo escritor europeu Stefan Zweig, que veio morar aqui fugindo da guerra. É a introdução ao seu livro "Brasil: o país do futuro", que pode ser lido na íntegra aqui.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Abortar o aborto

Da BBC Brasil, com minhas notas entre colchetes e pontos importantes em negrito.

Igreja convoca megaprotesto contra lei de aborto na Espanha




A Igreja Católica espanhola convocou os fiéis para mais uma manifestação nas ruas de Madri. Depois de se rebelar contra o casamento entre homossexuais, os bispos esperam liderar uma passeata de 1,5 milhão de pessoas neste sábado contra a lei do aborto.

Para o presidente da Conferência Episcopal, cardeal Antonio Maria Rouco Varela, "a Igreja fará uso do seu direito de se manifestar publicamente para expressar o desacordo com a lei".

Na apresentação do protesto à imprensa, o cardeal negou que a hierarquia eclesiástica esteja fazendo política. [Ah, tá, não é política, é intervenção artística, né?]


Segundo ele, o ato apenas reivindica o direito civil de livre expressão "porque em determinados momentos da história a Igreja é defensora da razão e de coisas que deveriam ser evidentes". [Gostaria de saber que momentos da História foram esses. Aliás, gostaria de ver um livro de História editado pelo Vaticano.]


Igreja x governo

A polêmica com o governo do primeiro-ministro socialista José Luis Rodriguez Zapatero não é nova.

A Igreja Católica saiu em passeata pela primeira vez em 2005 para reclamar da lei que permite o casamento entre homossexuais e adoção de menores por estes casais.

Na última Semana Santa, começou a incitar os fiéis contra a lei do aborto.

(...)

"Vamos às ruas para mostrar a este governo que somos muitos e não estamos dispostos a aceitar esta lei que despreza o drama de muitas mulheres que abortam por falta de apoio", disse à BBC Brasil Benigno Blanco, presidente do Fórum da Família.

O grupo antiaborto também lidera ao lado da cúpula eclesiástica um boicote civil à lei. Espera que médicos, enfermeiros e assistentes sociais aleguem objeção de consciência para não atuar em hospitais públicos em operações de aborto.

"O governo pretende impor com caráter obrigatório e sob coação sua ideologia de gênero e visão sobre a sexualidade. É inaceitável" [é isso aí. Só a igreja tem o direito de impor suas ideologias e visões!], completou Blanco, que já ganhou a primeira batalha contra Zapatero por meio de uma campanha com os farmacêuticos.

Pela nova lei do aborto as farmácias começaram a vender sem receita a pílula do dia seguinte, que pode ser tomada até 72h depois da relação sexual e serve para impedir gestações indesejadas.

Em resposta à lei, a Rede Espanhola de Farmacêuticos Responsáveis já avisou que não venderá o remédio por questões ideológicas.

Feministas

As mais de 200 instituições pró-aborto que se uniram no grupo chamado Rede Estatal de Organizações Feministas prometem reagir ao protesto.

Segundo a porta-voz do grupo, Ángeles Álvarez "se for preciso uma manifestação, também nos manifestaremos porque defendemos uma causa sensata e estamos fartas deste ativismo político indevido e fundamentalista da Igreja Católica", disse à BBC Brasil.

A ONG espanhola Católicas com Direito a Decidir, que também participa da rede feminista, definiu como "vergonhosa" a atuação dos bispos que lideram passeatas.



Grupo contra aborto também levará camisetas com bebê


"A Igreja está fazendo um papel político e não religioso. O que vemos aqui é uma cúpula eclesiástica que quer manter um poder que não lhe corresponde em uma sociedade laica. Quem decide sobre nossos corpos e nossa saúde somos nós", disse à BBC Brasil a presidenta da ONG, Maria del Mar Grande.

Segundo a lei, o governo oferece aborto grátis nos hospitais públicos até a 14ª semana de gestação ou até a 22ª em caso de perigo de vida para o feto e/ou para a gestante e se há má formação.

Também acaba com a penalização criminal para as mulheres que abortem fora dos prazos permitidos. A lei anterior previa multa e pena de seis meses a um ano de prisão.

A lei, aprovada no final do passado mês de setembro, também inclui um polêmico artigo que autoriza as jovens de 16 anos a abortar sem o consentimento por escrito dos pais.

Bonecos

A manifestação deste sábado contará com a distribuição de 200 mil bonecos de cinco centímetros representando a um feto de 12 semanas. [A estratégia típica de tentar sensibilizar o povo com bonequinhos.]

O objeto chamado de "bebê Aído", em alusão ao nome da ministra da Igualdade Bibiana Aído, defensora da lei do aborto, foi criado por um grupo de manifestantes "para comprovar que um bebê de 12 semanas é um ser humano que já tem cabeça, olhos, braços, pernas, mãos, pés e coração" ["Só vamos esconder o fato de que ele ainda não tem cérebro nem consciência, e portanto não pode ser considerado uma pessoa"], disse à BBC Brasil uma das criadoras do boneco, Fátima Navarro.

O grupo também levará camisas com a estampa do bebê para a passeata "numa campanha altruísta cujo objetivo é arrecadar ajuda para instituições assistenciais de apoio a mulheres que sofrem gestações em dificuldade", afirmou.

domingo, 18 de outubro de 2009

Bíblia - Servos de Deus



Da série "Bíblia: o bestseller menos lido do mundo"

Normalmente, você encontra a palavra "servo" em lugar de "escravo", na Bíblia. Isto é um recurso para amenizar o grande dilema moral que sofreriam os cristãos ao ver que seu deus apóia a escravidão. Acredito que a grande maioria dos cristãos nunca pensou sobre isso - um dos maiores crimes contra o ser humano, estimulado por Deus - um deus que, de acordo com elas, é todo-bondoso e todo-misericordioso.

Diversas passagens da Bíblia (tanto no Velho quanto no Novo Testamento) falam sobre a escrav... ahem, servidão. E falam para reconhecer, controlar e regular, e não para condenar. "Não escravizarás" NÃO está entre os 10 Mandamentos. Deus inclusive permite que os donos espanquem seus escr... servos, e que filhas sejam vendidas como escr... servas. Nem Jesus censura a escravidão. Nem Paulo (mas por que esperar qualquer mensagem decente de Paulo, afinal?). É incrível que algumas pessoas ainda considerem as lições desses homens maravilhosas e boas e perfeitas, quando eles eram coniventes com uma prática tão obscena quanto a mercantilização de pessoas.


Eis algumas passagens:


“Toda a alma esteja sujeita aos dirigentes superiores; porque não há dirigente que não venha de Deus, e os poderes foram ordenados por Deus.”
– Epístola de Paulo aos Romanos, 13:1


“Vós, servos, obedecei em tudo a vossos senhores segundo a carne, não servindo só na aparência, como para agradar aos homens, mas em simplicidade de coração, temendo a Deus.” 
 – Paulo aos Colossenses, 3:22



“Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus.” 
– 1 Pedro, 2:18


“Todos os servos que estão debaixo do jugo estimem a seus senhores por dignos de toda a honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados.” 
– 1 A Timóteo, 6:1


“Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração como a Cristo.” 
– Paulo aos Efésios, 6:5


“Exorta os servos a que se sujeitem a seus senhores, e em tudo agradem, não contradizendo. Não defraudando, antes mostrando toda a boa lealdade, para que em tudo sejam ornamento na doutrina de Deus, nosso salvador.”
– A Tito, 2:9-20



“Se alguém ferir o seu servo, ou a sua serva, com pau, e morrerem debaixo da sua mão, certamente será castigado. Porém, se ficarem vivos por um ou dois dias, não será castigado, porque é seu dinheiro.”
– Êxodo, 21:20-21



“Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá, mas ao sétimo sairá livre de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá: se ele era homem casado, sairá sua mulher com ele. Se o seu senhor lhe houver dado uma mulher, e ela lhe houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão do seu senhor, e ele sairá só com o seu corpo. Mas se aquele servo expressamente disser: eu amo a meus filhos, não quero ser libertado; então o seu senhor o levará aos juízes e o fará chegar à porta, ou ao postigo, e seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela, e o servirá para sempre.” 
– Êxodo, 21:2-6



“Dai a César o que é de César...”
– Mateus, 22:21


“E quanto a teu escravo ou a tua escrava que tiveres, serão das gentes que estão ao redor de vós, deles comprareis escravos e escravas. Também os comprareis dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas gerações que estiverem convosco, que tiverem gerado na vossa terra; e vossos serão por possessão.”
– Deus a Moisés, Levítico, 25:44-45



"Que aquele dos teus servos com quem for encontrada a taça morra, e, ao mesmo tempo, nós nos tornemos escravos do meu senhor". 
– Gênesis, 44:9.


"Vossos escravos, homens ou mulheres, tomá-los-eis dentre as nações que vos cercam; delas comprareis os vossos escravos, homens ou mulheres. Podereis também comprá-los dentre os filhos dos estrangeiros que habitam no meio de vós, das suas famílias que moram convosco dentre os filhos que eles tiverem gerado em vossa terra: e serão vossa propriedade. Deixá-los-eis por herança a vossos filhos depois de vós, para que os possuam plenamente como escravos perpétuos. Mas, quanto a vossos irmãos, os israelitas, não dominareis com rigor uns sobre os outros."
– Deus a Moisés, Levítico, 25:44-46



"Se um homem tiver vendido sua filha para ser escrava, ela não sairá em liberdade nas mesmas condições que o escravo."
– Deus a Moisés, Êxodo, 21:7




"Se um homem, ferindo seu escravo ou sua escrava, atinge-lhe o olho e o faz perdê-lo, deixá-lo-á ir livre em compensação de seu olho. E, se lhe deitar fora um dente, deixá-lo-á ir livre em compensação do dente." 
– Êxodo, 21:26-27


Agora: por que então não continuamos a escravizar pessoas? Não é graças à religião. É graças ao pensamento racional, à evolução da moral e da ética e da razão humana. Religião não é razão. Na verdade, é o oposto. Toda modernização que nossas religiões sofreram e sofrem até hoje, vêem de fora, e não de dentro. Das pessoas racionais = não-religiosas. Foram estas pessoas, e não os seguidores de Cristo ou  de Maomé, que lutaram pela abolição da escravatura, pelos direitos da mulher, pela liberdade de expressão e pensamento, pelo direito de duvidar, criticar e pensar e se expor. As religiões não apóiam nada disso. Porque foram criadas por homens primitivos, se comparados conosco. Homens preconceituosos, machistas, xenófobos, desesperados e enlouquecidos pelo martírio da sobrevivência. Precisavam de terra, de teto, de comida, de água, de trabalhadores, de guias, de fé.

Hoje não precisamos mais disso. Podemos abandonar as religiões e seguir adiante, considerando-as como o que elas são: mitologia, invencionice, histórias criativas, sim, algumas até inspiradas, parte do grande acervo cultural da história humana. E só. Mais nada. Não é disso que tiramos a nossa moral nem a nossa bondade. É de nós mesmos. A sua abjeção à escravidão prova isso. Não foi Deus quem te disse isso ou pôs isso na sua cabeça. Foi você mesmo.

Alegre-se: você não precisa mais de um guia imaginário.